quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018





Chuva


Negra, a noite enegrece o espaço opaco em torno.
Asas desfilam no ar, sumindo na penumbra.
O ar é parado e abafadiço. Como um forno,
A noite marcha e a terra inteira tinge a obumbra.

Rasga o colo do céu rubro rubi. Deslumbra
De um raio em ziguezague o rutilante adorno.
Tra o trovão após o raio que relumbra.
Morre na noite a dispnéia de um bochorno.

O arvoredo, a tremer, ergue os braços ao léu.
A terra ardente é toda um pedaço de gula,
Um desejo de brasa a pedir chuva ao céu.

E a chuva, em ricochete, abre o céu carregado,
Esperneia, peralta; em pingos grossos, pula;
E tomba, e treme, e tamborila no telhado...

Camillo de Jesus Lima




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 25 de fevereiro de 2018




Aceitarás o amor como eu o encaro ?...
Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.

Mário de Andrade



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 24 de fevereiro de 2018





Soneto do Cativo

Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!

David Mourão-Ferreira, in “Obra Poética”


 Painting by Serge Marshennikov


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018




Milagres

Ora, quem acha que um milagre é alguma coisa de especial?
Por mim, de nada sei que não sejam milagres:
ou ande eu pelas ruas de Manhattan,
ou erga a vista sobre os telhados
na direcção do céu,
ou pise com os pés descalços
bem na franja das águas pela praia,
ou fale durante o dia com uma pessoa a quem amo,
ou vá de noite para a cama com uma pessoa a quem
 amo,
ou à mesa tome assento para jantar com os outros,
ou olhe os desconhecidos na carruagem
de frente para mim,
ou siga as abelhas atarefadas
junto à colmeia antes do meio-dia de verão
ou animais pastando na campina
ou passarinhos ou a maravilha dos insectos no ar,
ou a maravilha de um pôr-de-sol
ou das estrelas cintilando tão quietas e brilhantes,
ou o estranho contorno delicado e leve
da lua nova na primavera,
essas e outras coisas, uma e todas
para mim são milagres,
umas ligadas às outras
ainda que cada uma bem distinta
e no seu próprio lugar.

Cada momento de luz ou de treva
é para mim um milagre,
milagre cada polegada cúbica de espaço,
cada metro quadrado da superfície da terra
por milagre se estende, cada pé
do interior está apinhado de milagres.

O mar é para mim um milagre sem fim:
os peixes nadando, as pedras,
o movimento das ondas,
os navios que vão com homens dentro
existirão milagres mais estranhos?

Walt Whitman, in "Leaves of Grass"



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018




Diz-me a Verdade acerca do Amor
Há quem diga que o amor é um rapazinho,
E quem diga que ele é um pássaro;
Há quem diga que faz o mundo girar,
E quem diga que é um absurdo,
E quando perguntei ao meu vizinho,
Que tinha ar de quem sabia,
A sua mulher zangou-se mesmo muito,
E disse que isso não servia para nada.

Será parecido com uns pijamas,
         Ou com o presunto num hotel de abstinência?
O seu odor faz lembrar o dos lamas,
Ou tem um cheiro agradável?
      É áspero ao tacto como uma sebe espinhosa
Ou é fofo como um edredão de penas?
      É cortante ou muito polido nos seus bordos?
Ah, diz-me a verdade acerca do amor.

Os nossos livros de história fazem-lhe referências
Em curtas notas crípticas,
É um assunto de conversa muito vulgar
Nos transatlânticos;
Descobri que o assunto era mencionado
Em relatos de suicidas,
E até o vi escrevinhado
Nas costas dos guias ferroviários.

Uiva como um cão de Alsácia esfomeado,
Ou ribomba como uma banda militar?
Poderá alguém fazer uma imitação perfeita
         Com um serrote ou um Steinway de concerto?
O seu canto é estrondoso nas festas?
Ou gosta apenas de música clássica?
      Interrompe-se quando queremos estar sossegados?
Ah! diz-me a verdade acerca do amor.

Espreitei a casa de verão,
E não estava lá,
Tentei o Tamisa em Maidenhead
E o ar tonificante de Brighton,
Não sei o que cantava o melro,
Ou o que a tulipa dizia;
Mas não estava na capoeira,
Nem debaixo da cama.

Fará esgares extraordinários?
Enjoa sempre num baloiço?
Passa todo o seu tempo nas corridas?
Ou a tocar violino em pedaços de cordel?
Tem ideias próprias sobre o dinheiro?
Pensa ser o patriotismo suficiente?
    As suas histórias são vulgares mas divertidas?
       Ah, diz-me a verdade acerca do amor.

    Chega sem avisar no instante
       Em que meto o dedo no nariz?
    Virá bater-me à porta de manhã,
       Ou pisar-me os pés no autocarro?
    Virá como uma súbita mudança de tempo?
       O seu acolhimento será rude ou delicado?
    Virá alterar toda a minha vida?
       Ah, diz-me a verdade acerca do amor.

W. H. Auden, in 'Diz-me a Verdade acerca do Amor'



Fonte do poema: http://www.citador.pt/


Foto: Art By Amy Judd

sábado, 17 de fevereiro de 2018




Talvez...

Seremos belos!
Nossa fronte,
Há de doirá-la a mesma juventude,
Que hoje nos cerca de um clarão sagrado!
Haverá nos teus lábios esse mesmo
Beijo vibrante que me trazes hoje!
E nos olhos terás o mesmo encanto
Que neles me seduz e prende agora!

Sim: no milagre desse instante ardente,
Nessa ressurreição maravilhosa,
Nós brilharemos juntos, aureolados
De um novo amor e de um carinho novo!

E então esse paciente amigo nosso
Volverá para nós, nos dias de hoje,
Toda a sua saudade religiosa,
E invejará, talvez, piedosamente,
Essa breve, ligeira hora de sonho,
Que hoje os destinos deixam que vivamos...


Múcio Leão, poeta e jornalista brasileiro 1898/1969

 (Poesias, 1949.)



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 11 de fevereiro de 2018




Espelho 


Sou de prata e exacto. Não faço pré-julgamentos.
O que vejo engulo de imediato
Tal como é, sem me embaçar de amor ou desgosto.
Não sou cruel, simplesmente verídico —
O olho de um pequeno deus, de quatro cantos.
Reflicto todo o tempo sobre a parede em frente.
É rosa, manchada. Fitei-a tanto
Que a sinto parte do meu coração. Mas cede.
Faces e escuridão insistem em separar-nos.
Agora eu sou um lago. Uma mulher se encosta a mim,
Buscando na minha posse o que realmente é.
Mas logo se volta para aqueles farsantes, o brilho e a lua.
Vejo as suas costas e reflicto-as na íntegra.
Ela paga-me em choro e em agitação de mãos.
Eu sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã a sua face alterna com a escuridão.
Em mim se afogou uma menina, e em mim uma velha
Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrível.

Sylvia Plath, escritora estadunidense  1932/1963

(tradução inédita de Pedro Calouste)

Foto: francesca woodman mirror photography
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/