Art By Pietro Annigoni (1910 - 1988)
sexta-feira, 1 de dezembro de 2017
Recordação
Agora, o cheiro áspero das flores
leva-me os olhos por dentro de suas pétalas.
Eram assim teus cabelos;
tuas pestanas eram assim, finas e curvas.
As pedras limosas, por onde a tarde ia aderindo,
tinham a mesma exaltação de água secreta,
de talos molhados, de pólen,
de sepulcro e de ressurreição.
E as borboletas sem voz
dançavam assim veludosamente.
Restitui-te na minha memória, por dentro das flores!
Deixa virem teus olhos, como besouros de ónix,
tua boca de malmequer orvalhado,
e aquelas tuas mãos dos inconsoláveis mistérios,
com suas estrelas e cruzes,
e muitas coisas tão estranhamente escritas
nas suas nervuras nítidas de folha,
- e incompreensíveis, incompreensíveis.
Cecília Meireles
Painting By Monika Luniak
https://www.pinterest.pt/cinafraga/
quinta-feira, 30 de novembro de 2017
Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
Fernando Pessoa
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/
quarta-feira, 29 de novembro de 2017
Canção das mulheres
Que o outro saiba quando estou com medo,
e me tome nos
braços sem fazer perguntas demais.
Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora
batendo a porta,
mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta.
Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite
com minha solicitude,
e se ela for excessiva saiba me dizer isso com delicadeza
ou bom humor.
Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem
se aproveite disso.
Que se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de
mim,
porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.
Que se estou apenas cansada o outro não pense logo que estou
nervosa,
ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.
Que o outro sinta quanto me dóia idéia da perda, e ouse
ficar comigo um pouco
- em lugar de voltar logo à sua vida.
Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas
sem fazer alarde nem dizendo
''Olha que estou tendo muita paciência com você!''
Que quando sem querer eu digo uma coisa bem inadequada
diante de mais pessoas,
o outro não me exponha nem me ridicularize.
Que se eventualmente perco a paciência, perco a graça e
perco a compostura,
o outro ainda assim me ache linda e me admire.
Que o outro não me considere sempre disponível, sempre
necessariamente compreensiva,
mas me aceite quando não estou podendo ser nada
disso.
Que, finalmente, o outro entenda que mesmo se às vezes me
esforço, não sou,
nem devo ser, a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa:
vulnerável e forte,
incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa - uma mulher.
Lya Luft
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/
terça-feira, 28 de novembro de 2017
Canção do dia de sempre
Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...
Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...
Mario Quintana
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/
segunda-feira, 27 de novembro de 2017
II - O Meu Olhar
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
Alberto Caeiro
Heterónimo de Fernando Pessoa
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/
domingo, 26 de novembro de 2017
Uma Ausência de Mim
Uma ausência de mim por mim se afirma.
E, partindo de mim, na sombra sobre
o chão que não foi meu, na relva simples
o outro ser que sonhei se deita e cisma.
Sonhei-o ou me sonhei? Sonhou-me o outro
— e o mundo a circundar-me, o ar, as flores,
os bichos sob o sol, a chuva e tudo —
ou foi o sonho dos demais que sonho?
A epiderme da vida me vestiu,
ou breve imaginar de um ócio inútil
ergueu da sombra a minha carne, ou sou
um casulo de tempo, o centro e o sopro
da cisma do outro ser que de mim fala
e que, sonhando o mundo, em mim se acaba.
Alberto da Costa e Silva,
in 'A Linha da Mão'
https://www.pinterest.pt/cinafraga/
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