domingo, 2 de julho de 2017

Homenagem a Sophia  De Mello Breyner  Andresen 
poetisa e escritora portuguesa

1919/2004





A ESTRELA
Eu caminhei na noite
Entre silêncio e frio
Só uma estrela secreta me guiava

Grandes perigos na noite me apareceram
Da minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira sendo ela só reflexo
De uma cidade a néon enfeitada

A minha solidão me pareceu coroa
Sinal de perfeição em minha fronte
Mas vi quando no vento me humilhava
Que a coroa que eu levava era de um ferro
Tão pesado que toda me dobrava

Do frio das montanhas eu pensei
«Minha pureza me cerca e me rodeia»
Porém meu pensamento apodreceu
E a pureza das coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu

E a fraqueza da carne e a miragem do espírito
Em monstruosa voz se transformaram
Disse às pedras do monte que falassem
Mas elas como pedras se calaram
Sozinha me vi delirante e perdida
E uma estrela serena me espantava

E eu caminhei na noite minha sombra
De desmedidos gestos me cercava
Silêncio e medo
Nos confins desolados caminhavam
Então eu vi chegar ao meu encontro
Aqueles que uma estrela iluminava

E assim eles disseram: «Vem connosco
Se também vens seguindo aquela estrela»
Então soube que a estrela que eu seguia
Era real e não imaginada

Grandes noites redondas nos cercaram
Grandes brumas miragens nos mostraram
Grandes silêncios de ecos vagabundos
Em direcções distantes nos chamaram
E a sombra dos três homens sobre a terra
Ao lado dos meus passos caminhava
E eu espantada vi que aquela estrela
Para a cidade dos homens nos guiava

E a estrela do céu parou em cima
de uma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha a cor que tem a cinza
Longe do verde azul da natureza

Ali não vi as coisas que eu amava
Nem o brilho do sol nem o da água

Ao lado do hospital e da prisão
Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais triste e mais sozinha
E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado

Nesse lugar pensei: «Quanto deserto
Atravessei para encontrar aquilo
Que morava entre os homens e tão perto


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
In Livro sexto, 1962
A Estrela


Fonte: http://www.avozdapoesia.com.br/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 1 de julho de 2017




Leitura

Quando por fim as árvores
se tornam luminosas; e ardem
por dentro pressentindo;
folha a folha; as chamas
ávidas de frio:
nimbos e cúmulos coroam
a tarde, o horizonte,
com a sua auréola incandescente
de gás sobre os rebanhos.

Assim se movem
as nuvens comovidas
no anoitecer
dos grandes textos clássicos.

Perdem mais densidade;
ascendem na pálida aleluia
de que fulgor ainda?
e são agora
cumes de colinas rarefeitas
policopiando à pressa
a demora das outras
feita de peso e sombra.


Carlos de Oliveira, in 'Pastoral'



Fonte: http://www.citador.pt/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/


sexta-feira, 30 de junho de 2017




Acho inúteis as palavras
Quando o silêncio é maior
Inúteis são os meus gestos
P'ra te falarem de amor

Acho inúteis os sorrisos
Quando a noite nos procura
Inúteis são minhas penas
P'ra te falar de ternura

Acho inúteis nossas bocas
Quando voltar o pecado
Inúteis são os meus olhos
P'ra te falar do passado

Acho inúteis nossos corpos
Quando o desejo é certeza
Inúteis são minhas mãos
Nessa hora de pureza.


António Sousa Freitas


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 29 de junho de 2017




Aqui, na areia,
Sentada à beira do cais da minha baía
do cais simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrente
sobre o cais desmantelado,
caindo em ruínas
eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical
desta terra de África
à beira do cais a desfazer-se em ruínas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num voo magistral em torno do mundo
desenhando na areia
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na mais bela de todas as lições
HUMANIDADE.

  
Alda do Espírito Santo (Poetisa de S. Tomé, 1926- )


Foto: https://pt.pinterest.com/cinafraga/

quarta-feira, 28 de junho de 2017



Golpes,
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.
A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
sobre a rocha
Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro
Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto
Do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.



Sylvia Plath (Poetisa Norte-Americana, 1932-1963)


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 27 de junho de 2017





É tão gentil e tão honesto o ar
de minha Dama, quando alguém saúda,
que toda boca vai ficando muda
e os olhos não se afoitam de a fitar.

Ela assim vai sentindo-se louvar
na piedosa humildade em que se escuda,
qual fosse um anjo que dos céus se muda
para uma prova dos milagres dar.

Tão afável se mostra a quem a mira
que o olhar infunde ao coração dulçores
que só não sente quem jamais olhou-a.

E quando fala, dos seus lábios voa
Uma aura suave, trescalando amores,
que dentro d’alma vai dizer: “Suspira!”

Dante Alighieri.

Tradução de Ivo Barroso.



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sábado, 24 de junho de 2017




O VERÃO PARTIU

O verão partiu
e nunca devia ter vindo
será quente o sol
mas não pode ser só isto

tudo veio para partir
nas minhas mãos tudo caiu
corola de cinco pétalas
mas não pode ser só isto

nenhum mal se perdeu
nenhum bem foi em vão
à luz clara tudo arde
mas não pode ser só isto

agarra-me a vida
sob a sua asa intacto
sempre a sorte do meu lado
mas não pode ser só isto

nem uma folha se consumiu
nem uma vara quebrada
vidro límpido é o dia
mas não pode ser só isto



Arseny Tarkovski


* Traduções de Paulo da Costa Domingos, publicada na revista escamandro.


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