segunda-feira, 29 de maio de 2017




CICLO

tenho o rio
e o futuro das margens
tênue memória
de antigas águas

abro os braços
e a sede é uma estrada
centrada no tempo
de minhas palavras

penso e não penso
em dirigir meu barco
por rotas inatas
de infinitos portos


BEATRIZ AMARAL
In: Planagem. São Paulo: Massao Ohno, 1998




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domingo, 28 de maio de 2017




E eu te beijava
sem me dar conta
de que não te dizia:
Oh lábios de cereja!

Que grande romântica
eras!
Bebias vinagre às escondidas
de tua avó.
Toda te enfeitaste como um
arbusto de primavera.
E eu estava enamorado
de outra. Vê que pena?
De outra que escrevia
um nome sobre a areia.

Federico García Lorca,

 in 'Poemas Esparsos'


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sábado, 27 de maio de 2017





A Cor da Tua Alma

Enquanto eu te beijo, o seu rumor
nos dá a árvore, que se agita ao sol de ouro
que o sol lhe dá ao fugir, fugaz tesouro
da árvore que é a árvore de meu amor.   

Não é fulgor, não é ardor, não é primor
o que me dá de ti o que te adoro,
com a luz que se afasta; é o ouro, o ouro,
é o ouro feito sombra: a tua cor.

A cor de tua alma; pois teus olhos
vão-se tornando nela, e à medida
que o sol troca por seus rubros seus ouros,
e tu te fazes pálida e fundida,
sai o ouro feito tu de teus dois olhos
que me são paz, fé, sol: a minha vida!

Juan Ramón Jiménez, 
in "Ríos que se Van"
Tradução de José Bento

Fonte do poema: http://www.citador.pt/

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sexta-feira, 26 de maio de 2017




A balança diz
que estou leve
como uma pena.
Que algazarra
à minha volta!



A minha sombra acompanha-me
agora à minha frente
agora ao meu lado
agora atrás de mim.
Que alívio
estes dias cobertos de nuvens!




Abbas Kiarostami, 
A Wolf Lying in Wait – 
Selected Poems, traduzido do Persa por Karim Emami e Michael Beard, 
Tehran: Sokhan Publishers, 2005, p. 30.




Foto: Irina F

quinta-feira, 25 de maio de 2017




Se Te Pertenço

Se te pertenço, separo-me de mim.
Perco meu passo nos caminhos de terra
E de Dionísio sigo a carne, a ebriedade.
Se te pertenço perco a luz e o nome
E a nitidez do olhar de todos os começos:
O que me parecia um desenho no eterno
Se te pertenço é um acorde ilusório no silêncio.

E por isso, por perder o mundo
Separo-me de mim. Pelo Absurdo.


Hilda Hilst, 
in 'Via Espessa'







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quarta-feira, 24 de maio de 2017






Tão alva, se inicia a manhã,
da maresia turva,
e duma mescla acinzentada,
sobressaindo,
dos olhos mudos,
em saliências suaves,
assim, transbordando,
pelos caiados, labirintos ornamentais...
...respirando através da pele,
do ardor e da febre,
e pulsando frágil,
das invisíveis fissuras, que se alastram ao peito...
Assim quando,
toda a palavra, é profundo pensamento,
ostentando-se,
pela transparência dum sorriso,
adentrando-se e perfurando,
em toda a cavidade plana, em esboços trémulos,
e assim derramando-se, pela plena alvura do papel....



Teresa Da Silva




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terça-feira, 23 de maio de 2017





às vezes sou
manancial entre pedras
e outras vezes uma árvore
com as últimas folhas
mas hoje me sinto apenas

como lagoa insone
como um porto
já sem embarcações
uma lagoa verde
imóvel e paciente
conformada com suas algas
seus musgos e seus peixes
sereno em minha confiança
acreditando que em uma tarde
te aproximes e te olhes
te olhes a olhar-me.


Mario Benedetti


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