domingo, 7 de maio de 2017




No Sorriso Louco das Mães
No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.

Herberto Helder, 
in 'Excerto do poema «Fonte», publicado em A Colher na Boca, 1961'




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 6 de maio de 2017





Ama-me. Ainda é tempo. Interroga-me.
E eu te direi que nosso tempo é agora.
Esplêndida de avidez, vasta ternura
Porque é mais vasto o sonho que elabora

Há tanto tempo sua própria tessitura.

Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
É transitória se tu me repensas.



Hilda Hilst



Foto:https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 5 de maio de 2017




MOVIMENTO

meu pensamento
se desloca
na correnteza
rio
sem afluentes
só desemboca
na plena
certeza
de sua própria corrente
cada vez mais denso
quase me afoga
em seu curso crescente
suas curvas
seus lances
seu tenso fluir
minha mente evoca
um momento
sem consequências
desenha palavras
numa corrente
fluvial
descolorida
e segue por imagens
perdidas
quase fluidas
minha firmeza
oscila
numa torrente
de idéias novas
inteiras
e sem desvios
no movimento
insólito
de ser
não ser
até descer
ao nível
de meu espelho
móvel:
o rio

BEATRIZ AMARAL
http://blocosonline.com.br/literatura/poesia/obrasdigitais/

In: Cosmoversos. São Paulo: Editora do Escritor, 1983



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 4 de maio de 2017




Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


Adélia Prado


Imagem: By Franz Dvorak

quarta-feira, 3 de maio de 2017




ESTRELA DA TARDE

Era a tarde mais longa de todas as tardes
Que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas
Tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca,
Tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste
Na tarde tal rosa tardia
Quando nós nos olhamos tardamos no beijo
Que a boca pedia
E na tarde ficamos unidos ardendo na luz
Que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto
Tardaste o sol amanhecia
Era tarde demais para haver outra noite,
Para haver outro dia. (Refrão)
Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza.

José Carlos ARY DOS SANTOS


Foto: Pesquisa Google

domingo, 30 de abril de 2017





Noite Apressada

Era uma noite apressada
depois de um dia tão lento.
Era uma rosa encarnada
aberta nesse momento.
Era uma boca fechada
sob a mordaça de um lenço.
Era afinal quase nada,
e tudo parecia imenso!

Imensa, a casa perdida
no meio do vendaval;
imensa, a linha da vida
no seu desenho mortal;
imensa, na despedida,
a certeza do final.

Era uma haste inclinada
sob o capricho do vento.
Era a minh'alma, dobrada,
dentro do teu pensamento.
Era uma igreja assaltada,
mas que cheirava a incenso.
Era afinal quase nada,
e tudo parecia imenso!

Imensa, a luz proibida
no centro da catedral;
imensa, a voz diluída
além do bem e do mal;
imensa, por toda a vida,
uma descrença total!


David Mourão-Ferreira, in "À Guitarra e à Viola"


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/